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segunda-feira, outubro 23, 2006

A Igreja como corpo ‘místico’ de Cristo
1- A imagem “corpo ‘místico’ de Cristo” só poderá ser devidamente entendida se a enquadrarmos dentro do conceito de comunhão. A Igreja é corpo de Cristo, não como mero corpo jurídico ou como um grupo social pertencente a uma comunidade, mas como expressão profunda da comunidade sacramental de todos os comungantes entre si no corpo de Cristo. Isto possibilita a identificação com a comunhão eucarística concreta. Por isso, ser cristão significa a afirmação de uma pertença a Cristo, e por Ele, à Igreja. Esta Igreja que é única faz com que o cristão seja membro dessa única Igreja. Assim, o conteúdo fundamental de todo o cristão está na comunhão do “corpo do Senhor”. Sendo a Igreja uma ‘sociedade de comunhão’ (sociedade de comunidades que comungam entre si), só pertence à Igreja o que comunga desse corpo, isto é, que pertence à comunidade de crentes; pertença essa iniciada no baptismo. Porém, a Igreja não pode ceder ao conformismo do abandono daqueles que estão fora desta comunhão, pois “eles são a ferida profunda do corpo do Senhor que ela deve sentir como a sua ferida” (RATZINGER, O novo povo de Deus , 116).

2- Povo de Deus, reinterpretado cristologicamente, pela entrega de Cristo, a Igreja é povo de Deus, como corpo de Cristo, que a torna Povo de Deus da história da salvação. Corpo de Cristo compreende a Igreja como realidade pessoal, que possibilita a comunhão de identidades, pois corpo exprime a pessoa e orienta para uma pessoa em continuidade com Cristo (Povo de Deus) e não para um grupo social. Assim, a fórmula a Igreja é corpo de Cristo faz da Eucaristia, pela qual o Senhor nos oferece o seu corpo e nos torna um só corpo, o ‘lugar do nascimento ininterrupto da Igreja, pela qual Ela a funda sempre de novo; na Eucaristia a Igreja é ela própria de modo mais intenso’. Um povo de Deus que vive do corpo e da palavra de Cristo torna-se ele mesmo corpo de Cristo. Como Povo de Deus, a Igreja é a expressão da comunhão fundada e fundamentada na participação do corpo de Cristo, sobretudo, na Eucaristia.

3- Esta imagem da Igreja presente em S. Paulo refere-se a um sujeito pessoal ou a uma “personalidade corporativa” que é a comunidade local concreta, fundamentada e unida em Jesus Cristo e à qual nomeia de corpo de Cristo. Não somente nomeia como estabelece uma relação unidade intrínseca entre comunidades. O mesmo significa dizer que a Igreja não se encerra na exaltação individualista das pessoas que compõem uma comunidade, pelo contrário, ela só se percebe se compreender que o “eu” se forma a partir de “tu” numa complementaridade e compenetração recíproca. Só assim poderemos penetrar na ideia de corpo de Cristo. Todavia, esta analogia enquadra-se em três planos semânticos possíveis. Num plano soteriológico a expressão corpo de Cristo refere-se a Jesus Cristo em si mesmo como aquele que se entregou com todo seu ser “em corpo e alma”, permitindo a reconciliação com Deus e entre nós. Isto só se torna possível pelo Espírito Santo que coloca a Igreja num estado de comunhão participativa da auto-entrega de Jesus Cristo e faz com que as pessoas se abram mutuamente entre si convertendo-as em sacramento de amor de Deus que tudo salva e reconcilia. No plano eucarístico-sacramental revela um acontecimento de reconciliação presente no corpo glorificado do Ressuscitado que é alcançado pelos fieis através da participação no único dom do pão, partido e distribuído na Ceia comemorativa do Cristo Redentor. O pão e vinho da eucaristia convertem-se juntamente no sinal participativo do amor de Deus que nos reconcilia em Cristo Salvador traduzido na expressão “isto é o meu corpo que será entregue por vós” (Cor 11, 24). Ou ainda segundo a Lumen Gentium a “Igreja é, em Cristo, de certa forma o sacramento, isto é, o sinal e o instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG1). Esta expressão com ecos paulinos permite abarcar em simultâneo a verticalidade mística da união com Deus (sinal) e a horizontalidade missionária da unidade da humanidade (instrumento). É por este sinal sacramental que melhor e claramente se expressa a dimensão pneumatológica, cristológica e escatológica da Igreja. Portanto, a Igreja revestida pelo corpo de Cristo procura fazer da Eucaristia momento pelo qual recebemos e nos tornamos corpo de Cristo, “o lugar de nascimento ininterrupto da Igreja, na qual ele a funda constantemente de novo” (RATZINGER, A Igreja: Uma comunidade sempre em caminho, 33-34). E, por último, apresenta-se no plano eclesiológico propriamente dito em que o baptismo no único Espírito e a participação no único corpo eucarístico integram todos os fiéis na unidade de um só e verdadeiro corpo possivelmente existente. Ora, como este corpo que é a Igreja parte do corpo eucarístico de Cristo, ela torna-se naturalmente corpo ‘místico’ de Cristo, isto é, realidade visível e concreta de algo transcendente e invisível. O “conceito é, pois, particularmente capaz de relacionar uma com a outra e distinguir uma da outra, com todos os matizes necessários, a estrutura visível da Igreja e a sua essência espiritual” (W. KASPER, La theólogie et l’ Église, Cerf, 352). O mesmo significa dizer que a Igreja, por um lado, procede apenas e totalmente de Cristo com referência permanente à sua pessoa, mas por outro, enquanto sinal e instrumento, ela existe inteiramente ao serviço da comunidade e de todo o Homem (judeu ou gentio). Jesus e a Igreja, a cabeça e os membros do corpo ‘místico’ constituem o “Cristo total” e porque não a ‘Igreja total’? Sintetizando, podemos dizer que a expressão “corpo de Cristo” adquire uma dimensão claramente comunitária, onde se procura estabelecer um princípio de unidade na variedade de carismas aí existentes.

4- Porém, a par desta exposição mais consensual, poderá colocar-se a questão: será a expressão corpo ‘místico’ de Cristo a melhor imagem para dizer a Igreja na sua profundidade? Certamente afirmar simplesmente e irredutivelmente que a Igreja é uma realidade complexa de um mistério ainda ele mais complexo não ajudará muito. Penso que o conceito ‘místico’ está um pouco em desuso não no sentido da espiritualidade cristã, mas na sua aplicabilidade à tentiva de descrevermos a Igreja como povo de Deus em comunhão com o corpo de Cristo. Pois, ela só é comunhão tendo como referência explicita o acontecimento de Cristo, fora disso, é um simples corpo jurídico e institucional. Assim, a expressão corpo místico de Cristo entra até em contradição com aquilo que é a essência da Igreja à luz do direito Canónico, pois ‘místico’ leva a entender a Igreja como uma sociedade pura e perfeita, desligada inclusivamente dos seus membros e da sua dimensão institucional. Por isso, quando o autor diz “estruturada deste modo com um corpo e com uma alma, a Igreja, como sociedade perfeita, existe compreendida na realidade sobrenatural e divina do mistério total da mesma” (GHIRLANDA, 55). E então onde é que colocamos a Igreja mistério e como realidade complexa (composta por um duplo elemento humano e divino)? Ao considerá-la realidade mística retiramos-lhe praticamente a sua dimensão humana, aliás, nem podia relacionar-se com a união hipostática presente em Cristo, pois na sua base só estaria presente o elemento espiritual, tornando-se ainda mais perfeita do que aquele que lhe deu origem. Considerá-la sociedade perfeita ou ‘mística’ (corpus ecclesiae mysticum) significa dizer que ela tende para a perfeição, sendo as outras sociedades humanas a mais perfeita. Doutro modo seria ignorar a existência as imperfeições existentes na Igreja que lhe retirariam toda a legitimidade e representatividade perfeita do acontecimento crístico. Dizer que a união “entre o Espírito de Cristo e o organismo visível da Igreja não é hipostática, mas só mística”, isto é, espiritual significa dizer que os sacramentos (a eucaristia pela qual nos tornamos corpo de Cristo) não têm um efeito prático (físico) mas só espiritual. Assim, a “Igreja já não se compreende a partir do sacramento do corpo de Cristo, mas parece como corporação de cristãos, que formam juntos o corpo místico, a cristandade como corpo jurídico“ (H. de LUBAC, Corpus mysticum, citado em RATZINGER, O novo Povo de Deus, Herder, 261). Com esta concepção podemos correr o risco de cair num platonismo dualista onde a dimensão humana da Igreja (corpo) é somente considerada por relação exclusiva à sua dimensão divina (mística), descorando as imperfeições nela presentes. Claro que quando falamos em corpo de Cristo não falamos de um corpo biológico-físico, mas de um corpo que se torna presente em cada um dos membros que o compõem, e esse corpo já é ele mesmo espiritual. Ao afirmarmos que a Igreja é corpo de Cristo não significa que seja mais ou menos metáfora do que concebê-la como carne de Jesus incarnado ou que o pão eucarístico é o corpo de Cristo. Igreja, carne, pão são verdadeiramente o corpo de Cristo, pois cada um é o seu complemento ‘físico’. O corpo físico traduz a ideia de ‘coexistência’ na medida que os membros do corpo humano partilham uma existência comum numa relação de intrínseca ligação. Isto mesmo significa dizer que a Igreja se torna eficazmente o corpo ressuscitado de Cristo.

P.S: Quanto ao termo “corpo 'místico' de Cristo” o autor do nosso livro não é bem claro, pois ao dizer que “na teologia medieval, quando se fala da Igreja como corpo, acrescenta-se o “místico”, para sublinhar a dimensão espiritual da Igreja” (Ghirlanda, 57) não está de todo correcto. Na idade média surge efectivamente este termo, pois na teologia patrística ou bíblica ele não aparece, porém o epíteto 'místico', interpretado à luz da linguagem jurídica romana, designa a pessoa jurídica, uma corporação. Mais tarde, a eclesiologia romântica (séc.XIX) verá neste conceito a Igreja como organismo da graça de Cristo e como organismo do Espírito Santo, estando nos de uma concepção de Igreja primacial e hierárquica. Daí que o termo 'místico', em minha opinião, e sem descorar o seu verdadeiro significado e sentido original, não traduza em linguagem actual a nova concepção de Igreja à luz do Vaticano II. Não foi intenção minha apresentar aqui uma apologia de negação da expressão “corpo místico”, mas de tão só dizer que a exposição feita pelo autor do manual e o uso do termo na teologia eclesiológica actual não será a melhor forma de expor a realidade mistério que é a Igreja. Não quer dizer que se deva eliminar, ela é necessária e diz sentido, porém, tal como a expressão “corpo ‘místico’ de Cristo” evoluiu ao longo dos séculos também teremos que focar o aspecto sacramental (patrística sem místico) do conceito juntamente com a dimensão corporativa (eclesiologia medieval), espiritual (romantismo) e relacional (a Igreja como comunhão – Vaticano II). O paradigma “corpo ‘místico’ de Cristo” é a pilastra sobre a qual está sustentado o conjunto de convicções, crenças, ritos simbólicos e reais de todo um povo que é o Povo de Deus, enquanto manifestação e analogia com a Igreja. Porém, os avanços na concepção de Igreja à luz dos tempos em que se situa, só é possível pela reformulação da tradição de modo que vejamos a realidade algo diferente mas sempre numa continuidade fundamental e não em ruptura absoluta. Ora o que está em causa não é a referência a Cristo como paradigma imutável na vida da Igreja mas os diversos modos de interpretação do seu rosto com os critérios de cada tempo num espaço adequado. A Igreja em si mesma não muda o que se verifica é uma diferença milenar numa clara visão do mundo e das sociedades que o compõem. Este tempo de transição e insegurança aparente transforma-se em momento de conversão e tensão essencial perante a novidade introduzida. Causa espanto e receito sermos considerados “corpo de Cristo”, mas essa é a mais sublime diferença na medida em que causa reacções que não se esperavam se viessem meramente de uma evolução histórica.



João Paulo Costa
4ºano de Teologia