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sexta-feira, outubro 27, 2006

Algumas considerações finais sobre o "corpo místico"

Caro Pablo Lima,

É para mim um motivo de alegria verificar que leste atentamente o artigo que coloquei no “blog” relativamente à unidade curricular de Direito Canónico Fundamental.
Sendo um comentário crítico com grande seriedade e sentido fraterno, tenho isso em máxima consideração. Não posso, contudo, deixar de aclarar algumas ideias não tão bem compreendidas, salvaguardando aquilo que é a minha convicção até onde for possível.
Passo então a esclarecer os teus argumentos, sem com isso pretender invalidar de forma alguma a tua exposição.



1- A primeira é que o autor não está correcto mas correctíssimo! é mesmo verdade que o termo «místico» aparece para sublinhar a dimensão espiritual da Igreja diante duma leitura meramente institucional e moral. Aliás, como podes ler nos números 60-61 da Mystici Corporis de Pio XII - que não citas uma única vez e que - como sabes - é o documento que universalizou esta terminologia até então, bastante erudita e pouco popular, a intenção é mesmo sublinhar que «esse termo bem entendido lembra-nos que a Igreja, sociedade perfeita no seu gênero, não consta só de elementos sociais e jurídicos» (60). Neste sentido, o termo Corpo místico de Cristo não está em contradição com a terminologia moderna de Igreja-comunhão mas de alguma forma a precede e prepara.

R. Não o citei intencionalmente, porque se na altura abriu algumas janelas fechou muitas outras. Nessa encíclica repara na disposição dos capítulos no concerne ao entendimento eclesiológico e compara com a Lumen Gentium. Não significa que uma seja superior a outra, tão somente a uma mudança evidente de paradigma, de entendimento. É isso que eu tento dizer com o artigo que escrevi, por isso, talvez, o termo “místico” aplicado à Igreja não diga tanto como as outras analogias. Uma coisa é assumir o termo claramente, outra é a pretensão que se procura assumir. Então podemos colocar a questão: se o termo Igreja-comunhão já esta de certa forma patenteado ao longo de todo o Cristianismo, porque é que ele nunca foi assumido como tal? Somente estava em gérmen? Não creio. Pois, temos que atender aos contextos presentes ao longo da história da Igreja, com tanto que se esclareça que uma coisa é assumir, outra é ter a pretensão de que seja mesmo.
Diz Ratzinger “a debilidade da encíclica de Pio XII sobre a Igreja consiste sem dúvida em não ter reflectido sobre a diferença das três concepções (patrística, medieval, romântica), de forma que se misturaram as três. Se se quer chegar a um enunciado claro, é indispensável uma limpa separação... a Igreja se concebe unicamente pelo seu lado jurídico ‘(concepção medieval)’... se se põe por base a ideia romântica de corpo de Cristo...o organismo misterioso da graça de Cristo não pode circunscrever-se ao âmbito da unidade visível da Igreja católica romana...” (RATZINGER, Um novo povo de Deus, Herder, 262).


2. é verdade que o termo não é bíblico mas tampouco o é o binómio Igreja-comunhão. Os termos eklesía e koinonía em S. Paulo não aparecem senão numa referência analógica. Nunca comunhão é substantivado como definição de Igreja. Neste sentido, se o termo «comunhão» é mais usado actualmente que o de «corpo místico» não é porque seja inferior.

R.
Em parte concordo contigo. Aliás, a imagem corpo de Cristo expressa melhor a Igreja. Mas há algo interessante a verificar, e S. Paulo, nas entre linhas, di-lo claramente: a Igreja é corpo de Cristo não como mero grupo social, mas como comunhão de crentes enraizados em Jesus Cristo (vejamos o sentido de personalidade corporativa, analogia matrimonial e eucarística presente nele); a Igreja é corpo de Cristo como marido e mulher são uma só carne (é aqui que aparece o verdadeiro sentido de comunhão). Obviamente que não podemos andar à procura do termo comunhão em S.Paulo para ver se ele se adequa ou não; a Igreja vai actualizando a sua linguagem e concepção; talvez o termo comunhão relacionado com o corpo de Cristo diga muito mais do que simplesmente um e outro isolados).
Deixas-me perplexo quando dizes “nunca comunhão é substantivado como definição de Igreja”, porque são Paulo diz: “o cálice de benção, que abençoamos, não é comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós (não será a Igreja?), embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão”(1Cor10, 16-17).Se a Igreja não é esta comunhão essencial e substancial em Cristo presente no sacramento da Eucaristia, não sei de que Igreja falamos? Talvez duma Igreja mística, espiritual, ideológica mas sem corpo, e por isso, sem alma de ser aquilo que deve ser? “A comunhão visível eclesial é a manifestação da comunhão com o Pai e com o Filho, Jesus Cristo (cf 1Jo, 3-7), em quanto que é a comunhão com Deus que fundamenta a comunhão eclesial” (GHIRLANDA, 37).
Quanto ao uso do termo “eklesía” em S. Paulo cito uma expressão lapidar de Ratzinger: “ele indica tanto a assembléia cultual ‘(aproximação a qahal)’, como a comunidade local, bem como a Igreja de um âmbito geográfico mais vasto, como, em fim, a Igreja idêntica e única de Jesus Cristo” (RATZINGER, Uma comunidade sempre em Caminho, S. Paulo, Madrid, 29).


Porventura não terá evitado Paulo um termo como esse por ser passível de péssima interpretação no contexto grego... Místico não era uma palavra muito apropriada bem como Mistério não o era e os resultados duma interpretação helénica e gnóstica não se fizeram esperar.

R.
Não concordo com esta tua interpretação pelo seguinte: quantas vezes utiliza Paulo a palavra corpo (swma) e espírito (pneuma) sem qualquer problema? Não seriam também problemáticos para os gnósticos e helénicos que os entendiam de uma forma bem diferente? Não terá sido o discurso do areópago sinal disso? E que sentido teria S. Paulo falar de um corpo glorioso ressuscitado, então? “Sendo de notar que “pneuma” (espírito) não representa uma antítese com “swma”, mas corpo é entendido no novo plano da ressurreição... ao afirmar isto vê-se claramente que a unidade que Paulo percebia na expressão “swma Kristou” não representa uma unidade de identificação, mas de união dinâmica” (RATZINGER, O novo povo de Deus , 266). Diz ainda que para “Paulo a Igreja não é mero corpo místico de Cristo, mas corpo real, ou, dito menos escandalosamente: para Paulo, a expressão «corpo de Cristo», que são os cristãos, não é só uma comparação, mas que expressa uma realidade decisiva da essência da Igreja” (Ibidem, 96).
Quando dizes que “Mistério” não era uma palavra muito apropriada eu não teria tanta certeza, pois S. Paulo usa-a: ”Grande é este mistério, mas eu falo em referência a Cristo e à Igreja” (Ef5, 32). Como verificas, tanto comunhão como mistério aparecem na tradição bíblica neo-testamentária em referência à Igreja enraizada em Cristo, já o termo “místico” não é tão frequente, ou melhor, nunca é usado neste sentido.


Quanto ao termo não ser patrístico, eu não teria tanta certeza... não tive tempo de procurar no Migne electrónico e, por isso, não afirmo nem nego.

R. Para ser exacto e sintéctico nesta dúvida deixo-te uma citação de RATZINGER, O novo povo de Deus , Herder, 112: “nem em Paulo nem nos Padres se dá a palavra ou expressão corpus Christi mysticum, mas a Igreja chama-se simplesmente (sem místico) «corpo de Cristo».

3- Finalmente, quanto a que «'místico', interpretado à luz da linguagem jurídica romana, designa a pessoa jurídica, uma corporação» creio que estás a fazer uma leitura anacrónica. Tens a certeza que o termo místico entra em algum sítio na linguagem jurídica romana e que não é uma leitura canónica de um termo teológico?

R. Claro que estou a fazer uma leitura anacrónica e histórica da expressão, isto é, exponho tal como era entendida na teologia medieval. E nós sabemos que a Igreja até ao Concílio Vaticano II esteve marcada pelo pensamento medieval na sua estrutura formal (não quer dizer que seja totalmente negativo, mas se calha face aos novos desafios emergentes, não seria o melhor caminho). Quando é que se passou a deixar de considerar a Igreja como sociedade perfeita no sentido hierárquico do termo? Somente com a constituição dogmática Lumen Gentium, considerando-se a Igreja primordialmente como mistério, e só no capítulo III é que aparece a constituição hierárquica da Igreja. Com isto não se procura desvalorizar o seu sentido institucional, antes pelo contrário, põe em relevo a sua importância. Posto isto, verifica se a encíclica Mystici Corporis de Pio XII põe isto em relevo e senão será ela herdeira da teologia medieval nos seus redutos?: “até ao séc. XII não se dá em troca (em relação ao conceito medieval) o emprego da palavra “místico”, que agora já não se aplica à eucaristia (teor sacramental tal como afirmei no artigo), mas à Igreja...designa uma alegoria... como ele chegamos a um ponto de partida: ao deslizamento do corpo até à esfera jurídica (ecclesiae mysticum)...poderia falar-se de uma interpretação corporativa e jurídica de corpo” (RATZINGER, O novo povo de Deus , Herder, 112-113).

A linguagem canónica usa de terminologia teológica que carece de reinterpretação quando extravasa o seu campo. é que o Direito Canónico não é uma disciplina teológica mas eclesiástica e, por isso, é muito fácil confundir os fundamentos.

R. E eu acho que tu acabaste de os confundir. Então o Direito Canónico não é uma disciplina teológica? Somente eclesiástica? Então, o que é a eclesiologia? O Direito Canónico fundamenta-se em quê? Em última instância, em quem é que se fundamenta a Igreja? Vez, o risco que se corre em considerá-la em termos de união mística! Então o que é o decálogo? Mais profundo ainda: as bem-aventuranças? Não será isto teologia, na qual o direito Canónico se baseia a partir da revelação de Deus aos homens com os quais estabelece uma nova aliança, permitindo um novo povo de Deus em Jesus Cristo? Afinal, não é isto a eclesiologia? É claro que não estamos a falar em teologia pura, mas não terá o Direito Canónico duas valências: uma carismática e outra institucional as quais se complementam? O direito que aqui falamos é teologia a partir do momento que estabelecemos uma relação entre Deus no caminho dos homens e os homens no caminho de Deus. É disciplina teológica quando em causa está a sacralidade da dignidade humana a qual possui direitos fundamentais e inalienáveis que o direito procura fazer valer. Deste modo "a personalidade de Deus e do homem permanecem intactas. O homem não é 'misticamente' absorvido em Deus; e 'o Pai' e 'o Filho' não perdem a sua soberania. Resta, apesar de tudo, entre Deus e o homem uma intimidade tão profunda que não poderia encontrar-se semelhante entre os homens" (R. SCHNACKENBURG, La communion avec Dieu selon Saint Jean, in Present et Futur, Paris 1969, 137).
Aqui entra a Igreja como a intermediária entre Deus e o Homem e a sua co-responsabilidade na preservação da felicidade de toda a criação. Se assim não fosse o Direito Canónico seria uma disciplina entre outras dentro da jurisprudência (meramente imanente e demasiadamente humano, tal como o é a maioria do direito civil). Se ele não tivesse origem teológica, nem eclesiológico seria, pois seria contradição absurda e insustentável. Não será o Direito que em certa medida sustenta a comunhão eclesial? Mas só há comunhão eclesial, se houver comunhão eucarística no sentido pleno do termo, isto é, comunhão com o corpo de Cristo. Assim, o conceito comunhão está presente em toda a concepção de Igreja, não como reunificação de um grupo de iluminados e perfeitos, mas como uma comunidades cujos os membros estão em íntima ligação com o corpo de Cristo.
Para finalizar esta argumentação não melhor do que a expressão “Sacrae disciplina leges”, isto é, leis da disciplina sagrada. Não é qualquer lei que está em causa. É a de Deus que a Igreja recebeu pela divina revelação e guardou ao longo da sua Tradição e história. Por isso, “AS LEIS DA DISCIPLINA SAGRADA teve a Igreja Católica, no decurso dos séculos, o costume de as Reformar e renovar para que, conservando sempre a fidelidade ao seu divino fundador, correspondessem adequadamente à missão salvífica que lhe foi confiada“ (CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO, UNIVERSIDADE DE NAVARRA, BRAGA 1997, 41).
João Paulo Costa
4º ano de Teologia