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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Exegese do cânone 4



A lei quando se promulga é para regular a vida da sociedade, e ao entrar em vigor é natural que a anterior deixe de fazer sentido. Contudo, o cân. 4 fala-nos que o CIC respeita aqueles direitos adquiridos e privilégios que o foram mediante actos das pessoas, segundo as normas vigentes antes da promulgação do mesmo CIC. Exceptuando, porém, no caso de que faça a sua explícita revogação.
Embora o texto em si do cân. 4 seja diferente do cân. 9, ambos pretendem afirmar o mesmo: o princípio da irretroactividade da lei e o principio excepcional da retroactividade quando expresso pela lei. Por irretroactividade da lei entende-se que uma lei quando promulgada dispõe para o futuro, ou seja, não tem efeitos retroactivos (sobre acções passadas), salvo excepção quando a própria lei diz o contrário.
O cânone refere-se a direitos adquiridos e privilégios. Eis então uma abordagem sobre estes dois conceitos:

1- Direitos adquiridos

As situações derivadas de um contracto, ou em geral de um negócio jurídico que procede da autonomia da vontade, geram autênticos direitos adquiridos. “O homem é o sujeito do direito, isto significa que ele é o protagonista da vida jurídica” (Javier Hervada). Assim, só podemos falar em direitos adquiridos quando a lei atribui certos direitos jurídicos que passam a integrar o património do sujeito. Deste modo, direitos adquiridos não são:

a) Direitos inatos
Os direitos adquiridos não são direitos inatos. Estes são direitos fundamentais do cristão que derivam do Baptismo e, por isso, remetem para a lei divina.

b) Expectativas
Um direito adquirido é aquele que deriva de um acto legitimamente realizado segundo o prescrito da antiga lei. Não se trata portanto de expectativas previstas ou contidas na respectiva lei sem que haja um acto de aquisição. O direito adquirido (ius quaesitum firmum) fica ligado à esfera jurídica da pessoa em virtude de um acto procedente do desdobramento da actividade do sujeito ou qualquer outra causa idónea para produzir esse acto. O título em que esse acto se apoia pode ser muito variado: uma lei ou um costume, a prescrição, o exercício do poder judicial ou administrativo, o poder de autonomia do interessado.

c) Capacidades
Os direitos também não se podem confundir com capacidades quer reconhecidas ou atribuídas. Estas tratam-se de faculdades que existem quando existe a lei, e cessando a lei, cessam as faculdades.

Além disso, o actual CIC respeita e não exclui os direitos adquiridos anteriores a si e há uma clara vontade em respeitá-los, como se expressa nos cc. 38, 121, 122, 192, 326 § 2, 562, 616 § 1 e 1196.

2- Privilégios
Os privilégios seguem o mesmo regime que os direitos adquiridos, isto é: permanecem intactos se estão em uso, a não ser que sejam expressamente revogados pelos cânones do Código.
Os privilégios, que se encontram entre os cc. 76-84 do CIC, são particulares poderes concedidos a pessoas físicas ou jurídicas, no intento a que estas sejam autorizadas a realizar determinados actos que de outro modo não o poderiam fazer. E segundo o cân. 76 § 1, o privilégio “pode ser concedido pelo legislador ou ainda pela autoridade executiva a quem o legislador tiver concedido tal poder.”
Contudo há algumas excepções:

a) Privilégios não contemplados no CIC
Os privilégios que tem a sua origem numa autoridade inferior à Sé Apostólica não estão contemplados, nem protegidos enquanto privilégios pelo CIC.

b) Impedimentos de certos privilégios
Todavia, o próprio Código revoga expressamente alguns privilégios, tais como: aqueles que podem impedir a liberdade do Bispo diocesano para conferir todos e cada um dos canonicatos (c. 509 § 1); qualquer indulto para demitir determinados Superiores de institutos religiosos de vida consagrada ou Sociedades de vida apostólica (c. 1019 § 2); e qualquer privilégio que impeça a existência de um só pároco ou moderador em cada paróquia (c. 526 § 2). Copultivamente, reprova qualquer privilégio que impeça o Bispo de escolher os clérigos que prefere para o acompanhar e auxiliar na visita pastoral (c. 396 § 2).

Por fim, o cânone estabelece, então, que quer os direitos adquiridos quer os privilégios permanecem íntegros (intactos), mas com a excepção de que não tenham sido revogados expressamente pelos cânones do CIC. O legislador reserva para si, portanto, o poder de regular diversamente os direitos adquiridos, mas isso deve ser feito expressamente, contrária a tacitamente, mas pode significar explicitamente ou implicitamente.
Os direitos adquiridos e privilégios gozam, efectivamente, de estabilidade.



Bibliografia:

- Commento al Códice di Diritto Canónico, Pontifícia Università Urbaniana, Facoltà di Diritto Canonico, Urbaniana University Press, Roma 1985.

- Instituto Martín de Azpilcueta, Facultad de Derecho Canónico, Universidade de Navarra, Comentário Exegático Al Código de Derecho Canónico, vol. I, EUNSA, Pamplona 1996.

- Javier Hervada, Cuatro lecciones de Derecho Natural, Parte especial, EUNSA, Pamplona 1989.

- AA. VV., Introdução ao Directo – 12º ano, Texto Editora, Lisboa 2001.


José Miguel Fraga Cardoso, n.º 743, 3º ano