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quarta-feira, dezembro 13, 2006

Estudo do Cânone 29

Decreta generalia, quibus a legislatore competenti pro communitate legis recipiendae capaci communia feruntur praescripta, proprie sunt leges et reguntur praescriptis canonum de legibus.

Parece-nos pertinente abrir este estudo com um apontamento, ainda que breve, sobre o Título III do Código, "De decretis generalibus et de instructionibus", já que, além de curto (seis cânones apenas, 29-34), veio, no conjunto, a revelar-se de extrema relevância no nosso trabalho, pela relação (ou falta dela, já veremos) entre uns cânones e outros.
Assim, tal título manifesta absoluta novidade relativamente ao CIC 17, propondo-se facilitar a distinção de funções dentro do poder eclesiástico, nomeadamente em matéria de exercício da competência legislativa; colocar "cada macaco no seu galho", um pouco à imagem, de resto, do princípio da separação de poderes consagrado no ordenamento jurídico civil. Este é, aliás, um dos propósitos expressos logo nos Princípios Directivos. Trata-se, em última instância, de garantir uma tutela mais eficaz dos direitos dos fiéis, distinguindo a lei dos actos de governo ordinário da Igreja, isto é, dos actos administrativos, normas ou disposições gerais ditadas pelas autoridades com poder executivo.
Tal anelo obrigaria a uma segunda distinção, entre o legislador e o executor, em ordem a superar promiscuidades do passado, ou seja, um "meter a foice em seara alheia" que esteve, amiúde, na base de quebras de segurança jurídica. Ora, como veremos, essa distinção surge diluída no cân. 29.
Feita esta introdução, passemos ao esmiuçar do texto, cuja fonte é o motu proprio Cum Iuris Canonici de Bento XV (15 de Setembro de 1917). Basicamente, o cân. 29, que trata dos decretos gerais, afirma que estes têm o estatuto e o valor de leis. Possuem as mesmas características e obedecem à mesma disciplina. Por isso, são confiados em princípio ao poder legislativo. Da leitura do texto, deduz-se que o emprego do termo "decreto" nada tira e nada acrescenta à natureza própria das disposições com destinatário abstracto, isto é, por princípio, o decreto geral, como qualquer disposição com o mesmo alcance jurídico emanada da autoridade legislativa, tem estatuto e valor de lei, mesmo se não usa esta designação. Consequentemente, a sua promulgação e os seus efeitos determinam-se a partir do exposto nos câns. 7-22, que tratam das leis eclesiásticas.
Ora, a grande dificuldade relacionada com este cânone prende-se exactamente com o lugar que o redactor lhe reservou, uma vez que a lógica "mandaria" que ele estivesse anexo ao Título I. Aqui, debate-se, aparentemente, "como peixe fora de água". Antes de desenvolvermos o problema, antecipamos já, pela rama, as duas razões que terão pesado na opção do redactor:
1) a denominação das normas em questão neste título;
2) a função a que chamaria "secundariamente" legislativa do poder executivo, mediante certos requisitos.
Na verdade, tratando o cân.29 das normas formalmente legislativas, admitir-se-ia logicamente que ele coubesse no bloco 7-22, tanto mais que é neste mesmo cân. 29, e não antes, que é - pelo menos vagamente - definida a lei, que são descritos os elementos ou características próprias da noção de norma legislativa, a saber: uma prescrição geral autónoma (= não está ao serviço doutra lei; mas esta nota não é no caso do decreto geral pacífica, vamos ver) com força de lei, dirigida a uma comunidade capaz de se erigir em seu sujeito passivo (tanto pelas qualidades como pela estabilidade que revela) e cujo autor é o legislador competente (ou a autoridade em que expressamente delega esse poder).
O aparente desfasamento explica-se a partir da ambiguidade do título escolhido para acolher os câns. 29-34, cujo verdadeiro conteúdo é a actividade normativa dos órgãos administrativos (no sentido de especificar o conteúdo das leis e facilitar o seu cumprimento), visto que para trás ficaram as determinação relativas à lei e ao costume, isto é, às normas que gozam de generalidade. Tal actividade normativa, desenvolvida sob a forma de decretos gerais executórios ou instruções, é de facto regulada pelos câns. 31-34, onde se estabelece a sua absoluta dependência da lei, a cujo serviço, portanto, se encontram.
Tudo seria simples caso não existissem decretos gerais não executórios, que se distinguem das leis restantes apenas e só pela denominação e que, como leis, não podem emanar, por princípio, senão da autoridade legislativa. A denominação foi então o critério-chave que pesou na deslocalização deste cânone, reunindo-o aos restantes decretos gerais, os executórios, sob um único e mesmo título.
A segunda razão tem a sua origem no facto de os órgãos administrativos não poderem emanar leis propriamente ditas mas somente decretos gerais com natureza e efeitos de lei, e na observância de certos requisitos
. Daí o figurarem neste Título III os câns 29 (segundo o qual o poder legislativo pode exercer-se quer sob a forma de leis quer de decretos gerais) e 30 – que estende ao poder executivo a faculdade de legislar sob aquela segunda forma. No fundo, não dispomos de um critério taxativo para distinguir com precisão a lei do decreto geral. Mas ajuda se pensarmos que esta última denominação está reservada àquelas normas que provêm de um órgão legislativo, não pela sua própria natureza, mas por expressa concessão do legislador.
Como já referimos, é o problema da segurança jurídica que está em causa. Não conceder ao poder executivo a faculdade de legislar tornaria mais clara a delimitação de competências, com óbvias vantagens para a segurança jurídica. No entanto – e aqui reside o busilis -, o redactor não quis privar a Cúria Romana de um direito que a tradição lhe concedeu. Mesmo as precauções tomadas para evitar a conversão da Cúria num órgão legislativo (cân. 30) tiveram duvidosa ou nula eficácia.
Como exemplo de decreto geral, temos os previstos no cân. 455, onde se reconhece poder legislativo à Conferência Episcopal. Já o cân. 445 afirma que, pelo contrário, os concílios particulares dependem do poder legislativo ordinário.
Resta uma última questão: há quem queira equiparar o decreto geral canónico ao decreto-lei civil. As opiniões dividem-se: uns rejeitam liminarmente tal analogia, por considerarem os decretos-lei normas legislativas de urgência ditadas pela administração (nesse caso, a existir intersecção de naturezas, seria com os decretos gerais executórios); mas outros preferem sublinhar que exactamente o que distingue o decreto geral da lei é o facto de ele ser dado em casos urgentes e como complemento de uma lei – então não deixaria de partilhar com os decretos-lei o carácter de urgência, podendo ainda pôr-se em causa o ser ele uma "prescrição geral autónoma".

Obras consultadas:

Universidade de Navarra/Instituto Martín de Azpilcueta – Código de Direito Canónico. 2ª Ed anotada a cargo de Pedro Lombardia e Juan Ignacio Arrieta. Braga: Theologica, 1997.

Universidad de Navarra/Instituto Martín de Azpilcueta/Facultad de Derecho Canónico – Comentario exegético al Código de Derecho Canónico. Coord. de A. Marzoa, J. Miras e R. Rodríguez-Ocaña. Pamplona: EUNSA, 1996; Vol. I.

Pontificia Universitá Urbaniana/Facoltà di Diritto Canonico – Commento al Codice di Diritto Canonico. Coord. de Mons. Pio Vito Pinto. Roma: Urbaniana University Press, 1985; Studia Urbaniana, 21


Miguel Miranda
5º ano de Teologia
nº 751